Em uma viagem há várias “viagens”

Me preparo para a viagem a Paraty, participar da FLIP 2019. Pesquiso os encontros e discussões que mais me interessam, entro em contato com amigos que lá estarão, arrumo a mochila, exemplares de Vestígios e uma garrafa de vinho completam a bagagem.

Em uma viagem há várias “viagens” e esse foi o mote para a lembrança da última que fiz, ocorrida em abril, rumo à Porto Alegre para participar do Porto Alegre Noir 2a edição.

A ida ao PORTO ALEGRE Noir II proporcionou um encontro entre escritores, leitores e cinéfilos. Resultado? Muitos bate-papos e várias sessões de cinema, noir, é claro.

Porto Alegre Noir II aconteceu de 9 a 14 de abril. Cheguei à cidade no dia anterior ao bate-papo que eu iria participar com os escritores Rafael Guimaraens e Luiz Gonzaga Lopes. O tema não poderia ser mais noir: À sangue frio – o crime verdadeiro e a literatura.

A minha preparação consistiu na leitura do ótimo Fim da Linha – O crime do bonde, de Rafael Guimaraens, publicado pela Libretos em 2018. Um crime verdadeiro ambientado no início do século 20, entre Rio de Janeiro e Porto Alegre, nos bastidores das disputas políticas da República Velha. Pelo Fim da Linha encontramos o senador gaúcho Pinheiro Machado e Ruy Barbosa em suas disputas eleitorais pela Presidência da República. O papel das mulheres nesse livro é o que lhes cabia nesse período e ambiente: secundário, oferecendo conforto e saídas honrosas aos homens em sua lida diária e rude de disputas.

Por meu lado, preparando a minha apresentação, revi a bibliografia que antecedeu ou acompanhou a escrita de Vestígios – Mortes Nem Um Pouco Naturais. As primeiras pesquisas foram para conhecer e caracterizar os agentes secretos brasileiros. Revi documentário e entrevistas de Cláudio Guerra, retomei as anotações da leitura de Memórias de uma Guerra Suja, com depoimentos do agente aos jornalistas Marcelo Neto e Rogério Medeiros. Segundo esses jornalistas,

“Cláudio Guerra foi um agente secreto que nunca esteve em listas de entidades de defesa dos direitos humanos e de torturadores, até porque não torturava. Matava.”

No documentário recentemente em cartaz nos cinemas intitulado Pastor Cláudio, dirigido por Beth Formaggini, o ex-agente secreto é entrevistado por Eduardo Passos, psicólogo e ativista dos direitos humanos. Nele, Guerra fornece detalhes de como desaparecia com os corpos de militantes mortos, colocando-os no forno da usina de beneficiamento de açúcar, em Campos de Goytacazes, RJ. Mas esse tipo de relato Cláudio Guerra já faz há muitos anos, com a frieza profissional que lhe é característica.

Cláudio Guerra foi um dos primeiros agentes que atuaram no período da ditadura militar, a dar detalhes de seu ofício, como as conversas diversionistas logo após o assassinato de um militante, em que um ou dois agentes se misturavam às testemunhas descrevendo tipo físico e veículo diferentes dos usados, provocando depoimentos incoerentes para dificultar qualquer investigação. Cláudio Guerra também se atinha a detalhes, como os encontros no Angu do Gomes (RJ) em que agentes e apoiadores do regime militar se encontravam para se divertir e confraternizar. Se era para planejar alguma ação, preferiam a saúna na esquina da rua onde ficava o restaurante, Massage for Man.

Outro agente secreto atuante no período foi Carioca, que teve sua história contada por Taís de Morais, no livro Revelações de um Agente Secreto da Ditadura Militar Brasileira. Carioca foi morto a golpes de machado em um período em que já estava afastado de suas funções como agente. Deixou a cargo de sua mulher a entrega de documentos ao editor Luis Fernando Emediato, da Geração Editorial, que passou para Taís de Morais a função de checagem de todas as informações e organização do livro que dá conta da morte e esquartejamento de dirigente político, assassinatos e violências outras não menos horripilantes e amedrontadoras.

Para entender o que homens sem postos de comando, homens a quem cabiam as tarefas menos nobres e mais violentas, os que estavam na linha de ação e perpetram violências extremas diretamente, busquei informações no trabalho coordenado pela socióloga Martha Huggins, que publicou os depoimentos de vários agentes no livro Operários da violência: policiais torturadores e assassinos reconstroem as atrocidades brasileiras.

Para conhecer o sistema de informações brasileiro e sua história, busquei diversas fontes, entre elas vale citar Ministério do Silêncio – A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luis a Lula (1927 – 2005), organizada pelo jornalista investigativo Lucas Figueiredo. Nessa publicação e em jornais e editoriais de época encontrei os meandros pouco conhecidos dos órgãos do Sistema de Informações, um prato cheio de disputas, informantes, agentes duplos.

Suspense, violência, realidade? Está tudo aí, no nosso cotidiano. Em Vestígios privilegiei o recorte de 1976 aos primeiros anos de 2000, isto é, do governo militar em suas primeiras negociações de abertura política ao início dos governos eleitos.

O tema que participei no Porto Alegre Noir, À sangue frio – o crime verdadeiro e a literatura remete a Truman Capote, obviamente, autor para sempre lembrado pela contundência do seu “romance não-ficcional”, considerado a primeira obra do New Journalism.

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